sábado, 15 de maio de 2010

O maior, o melhor, o nosso grande Jorge Jesus

A vida dele é o futebol

A direcção do Benfica já reuniu para votar o despedimento de Jorge Jesus. Como assim? O Benfica acabou de ser campeão e vai despedir o treinador? Sim e não. Sim, o Benfica já se reuniu para dispensar Jesus, mas não foi em 2010, nem foi o Sport Lisboa e Benfica que fez a melhor época dos últimos 30 anos e ontem se sagrou campeão. Foi em 1988 e falamos do Sport Benfica de Castelo Branco, onde Jesus cumpria uma das últimas etapas como jogador. Queriam livrar-se dele, um médio veterano de 34 anos, por acharem que não se esforçava e que só jogava quando queria.

"Achavam que Jesus não era profissional, que não corria. Queriam mandá-lo embora. Eu era contra e dizia "os dois [Jesus e Miguel Quaresma] são para ficar"", recorda Manuel Barata, na altura um homem influente no futebol do clube e o responsável pela contratação de Jesus. Já na altura Jesus trabalhava com Miguel Quaresma, seu actual adjunto no Benfica lisboeta (conheceram-se quando estavam ambos nas camadas jovens do Sporting); Quaresma era o treinador da equipa depois de já ter terminado a carreira como jogador. A votação da direcção, que era composta por "20 e tal indivíduos", conta Manuel Barata, ficou empatada, mas "não havia condições" e Jesus não continuou, apesar de o clube ter conquistado a promoção à Zona Centro da 2ª Divisão B - Quaresma também sairia pouco depois, substituído por Félix Mourinho, o pai de José Mourinho.

A carreira de Jesus jogador ainda iria conhecer uma última etapa, no algarvio Almancilense, e, nessa mesma época, acabaria por se estrear como técnico principal ao serviço do Amora. Manuel Barata, que também era o presidente da Associação de Futebol de Castelo Branco, já via qualquer coisa naquele médio durante os jogos do campo pelado do Vale do Romeiro e sente-se vingado pela carreira que Jesus viria a construir. "Deixou uma marca. Hoje, nos cafés, vêm falar comigo e dar-me razão", confessa este homem de 67 anos que deixou de se dedicar ao futebol para gerir os seus negócios e que ainda hoje mantém contacto com o técnico do Benfica.

O que se seguiu mostra o quanto a direcção do Benfica de Castelo Branco estava enganada em relação a Jorge Jesus e ao seu empenho, que não é nada menos que total. É obsessivo, quase só pensa em futebol, está atento a todos os pormenores e antecipa todos os cenários. Passa muitas horas no clube, tem uma espécie de estúdio de televisão em casa para gravar todos os jogos, leva todos os seus jogadores ao limite e promove a união do grupo. "Sou a favor da perfeição, sou um louco pela perfeição", contou numa entrevista recente.

Jesus tem interesse por tudo o que diz respeito ao futebol. Por exemplo, quando foi treinador do Belenenses, entre 2006 e 2008, pediu ao presidente da altura, José Cabral Ferreira, que o apresentasse a Manuel Sérgio, antigo vice-presidente do clube do Restelo, professor aposentado da Faculdade de Motricidade Humana e autor de vários livros sobre desporto e futebol. "É um homem de grande curiosidade. Foi ele que mostrou vontade de me conhecer. Costumávamos almoçar no Restelo todas as semanas, eu, ele e o Homero Serpa [antigo jornalista de A Bola e sócio do Belenenses, que morreu em 2007]", recorda o antigo deputado.

Aprendiz de soldador
Falavam, claro, de futebol. De uma dessas conversas, Manuel Sérgio reteve esta expressão: "Professor, eu vejo diferente." Não era a visão alterada de um louco, ressalva o professor, mas de alguém que considera ser um líder natural e que "daria um bom general". "Não é só pelo que ele sabe de futebol, sabe ser líder, sabe comunicar e motivar, criou o seu mundo do futebol, que resulta. É um dos grandes treinadores nacionais e internacionais", diz Manuel Sérgio, colocando Jesus no mesmo patamar de dois dos grandes técnicos da história do futebol português com quem teve contacto próximo, José Maria Pedroto e José Mourinho.

Jorge Fernando Pinheiro de Jesus nasceu a 24 de Julho de 1954, na Amadora, filho de Virgolino, antigo futebolista que era soldador na empresa de cabos eléctricos Celcat, e Elisa. Oito anos antes, tinha nascido Carlos e, sete anos depois, nasceria José. Jorge Fernando, o irmão do meio, não foi muito longe nos estudos, mas chegou a acumular a escola com o emprego de aprendiz de soldador na mesma empresa do pai, enquanto era futebolista aprendiz nas camadas jovens do Estrela da Amadora e, depois, no Sporting - o pai tinha sido avançado do Sporting nos anos 40, suplente dos famosos "cinco violinos", a temível linha avançada "leonina" composta por Albano, Travassos, Vasques, Jesus Correia e Peyroteo.

Jesus recorda, numa entrevista recente ao jornal A Bola, que não conseguia conciliar as três coisas e conta que deixou duas delas para trás e apostou numa. "Estudava à noite e trabalhava como soldador durante o dia. Um dia, cheguei a casa, às onze e tal da noite, estava a jantar e lembro-me perfeitamente que adormeci à mesa e a minha cabeça caiu dentro do prato da sopa. O meu pai chamou-me e disse-me para escolher entre os estudos, o trabalho e o futebol." Jesus escolheu o futebol.

Começou como juvenil no Estrela da Amadora em 1970 e, no ano seguinte, já estava no Sporting, onde completou a sua formação. Quando subiu ao escalão sénior, foi duas vezes emprestado, ao Peniche e ao Olhanense, e só depois, em 1975, teve uma oportunidade na equipa principal do Sporting. Jogou pouco, marcou apenas um golo, e foi para o Belenenses. Nesta única passagem pelo Restelo como jogador, Jesus não teve o sucesso que viria a ter, mais tarde, nas duas épocas como treinador.

De Lisboa, Jesus foi para Famalicão, para o Riopele, clube fundado em 1958 por uma empresa de têxteis da região. Tal como a CUF (Confederação União Fabril), o Grupo Desportivo Riopele era um clube que recrutava maioritariamente empregados da fábrica, mas o sucesso da equipa levou a outros investimentos e, em 1977, ia disputar pela primeira e única vez o campeonato da primeira divisão. Jesus foi uma das contratações do clube minhoto e foi titular indiscutível durante a temporada (marcou três golos), não evitando, no entanto, a descida de divisão - a empresa têxtil ainda existe, a equipa foi extinta nos anos 80.

Na época seguinte, Jesus regressou à segunda divisão, para jogar no Juventude de Évora. "Fez parte de uma grande equipa que tivemos. Era um cabeça de cartaz. Era um moço muito exigente, muito educado, ganhava um bocadinho acima da média em termos de ordenado, cerca de 20 e poucos contos por mês. Era um jogador muito fino, com uma técnica extraordinária", diz Amadeu Martinho, na altura (e agora) presidente do clube alentejano.

Em Évora, Jesus era um recém-casado. "Tinha o mesmo tipo de penteado", lembra o presidente do Juventude, que lamenta não ter tido argumentos financeiros para o segurar. "Só fazíamos contratos de um ano", acrescenta. Para Jesus, o apelo do futebol de primeira divisão foi mais forte e, na época seguinte, já estava na União de Leiria, iniciando um período de oito épocas consecutivas no principal campeonato português: União de Leiria (1979/80), Vitória de Setúbal (1980 a 1983), Farense (1983 a 1985) e Estrela da Amadora (1985 a 1987).

Nasce um treinador
Depois do clube da sua terra, Jesus não voltou a jogar na primeira divisão. À experiência em Castelo Branco, onde funcionava mais como um adjunto em campo, seguiu-se meia temporada no Almancilense, onde também era um prolongamento em campo da vontade do treinador, uma profissão que Jesus desejava. O destino fez-lhe a vontade, num domingo à tarde, em Abril de 1990, num jogo entre o Almancilense e o Amora.

Ao intervalo desse jogo da Zona F da III Divisão, o Amora, clube do concelho do Seixal, vencia por 3-0. Jesus estava no banco e entrou depois do intervalo. O jogo terminou empatado (3-3) e Jesus foi determinante. Isaú Maia, na altura director desportivo do Amora, ficou impressionado e o clube avançou para a sua contratação. Jesus não foi difícil de convencer, mas tinha uma condição: não queria ser jogador-treinador, apenas treinador. "Dava para perceber que ele tinha estampa de treinador", diz Maia.

Os efeitos foram imediatos. Nessa mesma época, Jesus levou o Amora à II Divisão B e, em 1992, conduziu o clube da margem sul à II Divisão, mas foi despedido no decorrer da temporada. "Acho que foi o melhor treinador de sempre do Amora. Os jogadores até choraram quando ele saiu", conta Maia. Já na altura Jesus dava sinais da sua personalidade forte como treinador. Segundo Isaú Maia, o técnico não deixava ninguém levantar-se do banco durante os jogos e não admitia interferências da direcção. "Chegou a expulsar do balneário o próprio presidente."

Com a sua passagem pelo Amora, Jesus ganhou nome como treinador e, em 1993, foi para o Felgueiras, da II Divisão de Honra, uma equipa em ascensão que Jesus conduziria à primeira liga, na época seguinte. Era o seu ano de estreia como treinador ao mais alto nível naquela que seria a única temporada do Felgueiras na divisão principal - desceria de escalão na temporada seguinte e, entre o ocaso competitivo e os escândalos relacionados com o financiamento municipal durante a gestão de Fátima Felgueiras, o clube deixou de ter futebol profissional.

Logo no início de temporada, o Felgueiras assumiu-se como a grande revelação do campeonato, andando muitas jornadas nos lugares da frente. Uma das principais figuras da equipa era um talentoso jovem extremo emprestado pelo FC Porto chamado Sérgio Conceição. "Jesus era um treinador exigente e tacticamente muito bom", garante o antigo internacional português, actualmente director desportivo do PAOK Salónica, clube da primeira divisão grega.

Conceição, que seria um dos jogadores de referência do futebol português entre o final dos anos 1990 e o princípio do século, foi a revelação do campeonato, mas também ele entrou em choque com a personalidade forte de Jesus. "Lembro-me que, num jogo em Leiria, estava a jogar no lado direito, fui queixar-me ao treinador que tinha dois adversários para marcar no meu flanco e dei um pontapé numa garrafa de água. No balneário, travámos um aceso duelo verbal e, durante a semana seguinte, fui treinar com os juniores."

O Felgueiras acabaria por descer de divisão - "deixámos de ser a surpresa e acusámos alguma falta de experiência", justifica Conceição -, mas Jesus ainda lá ficaria mais uma temporada e meia, falhando, no entanto, a subida. Foi em Felgueiras que se criou a já famosa inimizade com Augusto Inácio. Jesus substituíra Inácio no Felgueiras e, depois de ter falhado por pouco a promoção, o técnico disse que teria subido de divisão se tivesse pegado na equipa desde o início. No entender do actual treinador da Naval, foi uma falta de cortesia e, desde então, nunca mais cumprimentou Jesus. "É um bom treinador e um mau homem", diz Inácio, que não é o único com quem Jesus tem uma má relação - o técnico do Nacional da Madeira, Manuel Machado, referindo-se a Jesus, disse, após um jogo com o Benfica, que "um vintém é um vintém, um cretino é um cretino".

Bem mais curta foi a passagem pelo União da Madeira (meia época), acabando por ir parar, de novo, ao Estrela da Amadora, onde já tinha estado como futebolista juvenil e sénior, e onde voltaria a treinar durante mais época e meia. Num clube que vivia em permanentes dificuldades financeiras (que ditaram, entretanto, a extinção do futebol profissional), Jesus conseguiu, durante duas épocas, construir equipas competitivas e a jogar bom futebol. Da Amadora foi para Setúbal, onde também já tinha estado como jogador, conduzindo a equipa do Bonfim à primeira divisão (saiu na época seguinte) e regressando à Reboleira para mais temporada e meia na II Liga.

Desde então, nunca mais deixou de ser treinador na primeira divisão. Seguiram-se Vitória de Guimarães (2003/04), Moreirense (2005), União de Leiria (2005/06), Belenenses (2006/07 e 2007/08), Sporting de Braga (2008/09) e Benfica (2009/10). Um rápido resumo da sua carreira como treinador: entre 1989 e 2010, esteve em 11 clubes, com um título de campeão nacional e uma Taça da Liga pelo Benfica (2009/10), três subidas de divisão (Amora, 1992; Felgueiras, 1995; Vitória de Setúbal, 2001) e uma final da Taça de Portugal (Belenenses, 2007).

O primeiro "grande"
Jesus nunca se furtou ao auto-elogio. É famosa a sua declaração, após um jogo entre o Belenenses e o Real Madrid em 2007, a contar para o troféu Teresa Herrera, em que os "merengues", na altura com jogadores como Casillas, Pepe, Cannavaro e Robinho, e treinados pelo alemão Bernd Schuster, venceram apenas por 1-0: "Com os jogadores que o Real Madrid tem, é preciso jogar mais. Se não o faz, o problema é do treinador. Com os jogadores dele, dava-lhe três de avanço, mudava aos cinco e acabava aos dez."

Com um novo empresário (Jorge Mendes, o mesmo de José Mourinho e Cristiano Ronaldo), Jesus, dependendo dos seus sucessos a curto prazo, pode saltar para outro campeonato, ele que, como mostrou o episódio com o Real Madrid, sempre teve vontade de assumir um grande desafio. Depois de ter andado na órbita de Sporting e FC Porto (Pinto da Costa revelou que podia ter contratado Jesus já para esta temporada), Jesus foi para o Benfica, depois de uma boa época no Braga.

As negociações foram duras, mas só a vontade do técnico e o facto de ter abdicado da sua parte na transferência para a Luz desbloqueou o processo. Para um clube habituado a contratar treinadores estrangeiros (Jesus foi apenas o quarto treinador português a ser campeão pelo Benfica, depois de Fernando Cabrita, Mário Wilson e Toni), o técnico da Amadora era uma aposta arriscada, mas que se revelaria de grande sucesso.

Para além de nunca ter sido testado em clubes "grandes", a sua imagem, por exemplo, contrastava com a do seu antecessor, o espanhol Quique Flores (actualmente no Atlético de Madrid), um homem bem-falante e com muito à-vontade no espectáculo mediático, mas de méritos técnicos bastante discutíveis. Pelo contrário, Jesus, para lá do sucesso alcançado, era conhecido comoo homem do cabelo branco e das gaffes, como "os motocards da Amadora", a "neutralização do Verona" (Verona era um brasileiro que o Belenenses queria ver com nacionalidade portuguesa), o "forno interno do clube", o "vocês os três façam um quadrado" (Jesus só admite a dos motocards, diz que as outras são invenção).

A família
Estar no Benfica vai contra a tradição clubística da família. O pai Virgolino jogou no Sporting, tal como o próprio Jesus, e os irmãos Carlos e José também são adeptos do clube leonino. Embora nunca o tenha admitido publicamente, Jesus terá simpatia pelo Sporting, mas é este tipo de pormenores que o técnico gosta de preservar do público.

É um homem reservado, que vive com a sua segunda mulher, Ivone (com quem casou há 19 anos), numa vivenda na Charneca da Caparica. Tem dois filhos do primeiro casamento, Tânia e Gonçalo, e um do segundo, Mauro, de 16 anos, bom aluno e praticante de râguebi. Perdeu a mãe em 2007 e, durante algum tempo, não usou outra cor senão o preto. Tal como acontece no Benfica, em que promove encontros frequentes entre os jogadores fora dos jogos e dos treinos, Jesus também preza a unidade familiar e junta-se muitas vezes com os irmãos e com o pai à mesa, para uma refeição.

Em tempos mais recentes, Virgolino, de 87 anos, esteve internado e isso motivou uma rara quebra de Jesus da sua auto-imposta reserva da intimidade, dedicando-lhe a conquista da Taça da Liga, já este ano, numa final frente ao FC Porto. "Nunca dedico vitórias à minha família, mas dedico esta ao meu pai. Que me perdoem os benfiquistas", declarou. Poucos dias antes, revelara que vira o avô morrer durante a final da Taça de Portugal em 1967. "No prolongamento, ele sentiu-se mal e morreu ao meu lado. Jamais esquecerei."

Aos 55 anos, o homem que deixou a escola para se dedicar ao futebol e que disse, em tempos, que o fair-play era "uma treta", já não tem o cabelo tão branco como antes. Depois de tanto tempo a ser gestor de crises e poucos recursos em clubes pequenos, o "Carinhas", alcunha que ganhou no mundo do futebol, provou que sabe lutar e conquistou o campeonato. Era o que andava a prometer há vários anos, mas ninguém acreditava nele.

(reportagem do Público, que li e retirei do Magalhães-SAD-SLB)

Sem comentários: