terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Entrevista a João Vieira Pinto



Um dos mais geniais jogadores portugueses de todos os tempos passa em revista uma carreira tão notável quanto atribulada. Do Bairro do Falcão ao topo do reconhecimento internacional, eis o trajeto de um artista que, penduradas as botas, deseja que a história seja generosa com ele.

RECORD - Tem saudades dos tempos em que foi jogador de futebol?
JOÃO VIEIRA PINTO - Acredito que todos os antigos futebolistas sentem falta dos dias mais felizes das suas vidas. Mas encaixei bem a mudança até porque a decisão não foi tomada de um dia para o outro. Depois arranjei ocupação que me obriga a interessar-me pelo futebol e a estar ligado ao fenómeno: há ano e meio que sou comentador desportivo.

R - Isso ocupa-lhe todo o tempo?
JVP - Não, tenho tempo para mim, para a família, para ser vice-presidente do sindicato dos jogadores e até para um cargo que desempenho há pouco tempo: sou administrador da Gaianima, empresa da Câmara Municipal de Gaia, responsável por eventos culturais e desportivos, com responsabilidades no âmbito do desporto escolar e na gestão de equipamentos como estádios, pavilhões e teatros. À imagem da minha carreira, na qual não programei qualquer passo, aconteceu sem esperar.

R - Quando olha para trás vê-se mais vezes com que camisola?
JVP - Com todas. Respeitei cada clube em que joguei e defendi intransigentemente todos os emblemas que defendi. Não tenho preferência, o que é uma vantagem para aquilo que faço hoje. A minha preocupação foi ter independência financeira para decidir sem pressões. E isso foi conseguido.

R - Não existe para si um João Pinto do Benfica ou do Sporting...
JVP - Não, não existe. Quando fui para o Sporting sabia que a relação dos adeptos benfiquistas ia ser quebrada - viram-me a festejar títulos com a camisola do rival. Mas também tinha consciência de que não podiam ver-me como sportinguista atendendo ao passado que tinha na Luz.

R - Não tem clube?
JVP - Sou do Sp. Braga, que é o clube do meu filho.

R - Por pouco não se cruzava com ele nos relvados. Gostava que isso tivesse acontecido?
JVP - Já falámos sobre o assunto. Teoricamente era uma situação engraçada mas na prática não sei se teria assim tanta piada. Não fazia grande questão de jogar com o Tiago e ele sente o mesmo. Gostávamos de fazer um jogo e ficar por aí. É diferente estar num balneário com o nosso filho. Creio que não estaríamos à vontade. Podia ser constrangedor.

R - Voltando um pouco atrás, o Pauleta diz que é da Seleção Nacional...
JVP - Bem vistas as coisas, estive mais tempo ao serviço da Seleção do que em qualquer clube.

R - Também por isso a despedida não foi a mais feliz. Lamenta o que sucedeu?
JVP - A minha carreira foi manchada por aquela expulsão no Mundial'2002. Foi o princípio do fim do estrelato: deixei de ir à Seleção, a época no Sporting não correu bem e, no fim, troquei um grande pelo Boavista... Enfim, espero não ser recordado só pelo que fiz na Coreia. Arrependo-me da atitude que tomei, até porque fui o mais prejudicado. Sei que foi um momento marcante, difícil de esquecer, mas talvez o futuro seja generoso e o dilua entre as muitas coisas boas que fiz.

R - Já falou com Gilberto Madaíl depois disso?
JVP - Telefonou-me quando anunciei o fim da carreira. Tive pena que fosse só nessa altura mas, já diz o povo, mais vale tarde do que nunca. De qualquer modo, o assunto Mundial está ultrapassado. Sei que não foi coincidência ter sido afastado da Seleção, sempre entendi que o assunto devia ter sido conduzido de outra forma e fiquei abalado com a indefinição, mas já lá vai.

R - Os árbitros foram uma sombra na sua carreira?
JVP - Apanhei uma época muito agitada, carregada de suspeições à volta daquele sector. Talvez tenha sido essa a origem dos meus conflitos com grande parte dos árbitros. Mas a culpa também era minha, porque exagerava, mesmo tendo razão em boa parte das vezes. A verdade é que senti-me perseguido em determinadas fases e, principalmente quando cheguei ao Boavista, fiquei desprotegido e à mercê de vinganças inaceitáveis. Não tenho boa imagem dos árbitros e é por isso que, nos meus comentários, nunca falo sobre arbitragem.

R - Há algum caso que considere particularmente grave?
JVP - Não esquecerei um árbitro que me expulsou injustamente e a rir. Só não digo o nome dele porque ainda está no ativo.

R - Simulou penáltis?
JVP - Simulei alguns. Pertenço a uma geração que cresceu como se isso fosse uma arte. O estímulo ao engano é instintivo. Mas, já que fala nisso, também sofri muitos que os árbitros não marcaram. Numa época, ao serviço do Sporting, levei 10 amarelos, 7 dos quais por simulação de penáltis. Quatro foram mesmo falta, três não. Eles já não sabiam o que fazer.

R - Marcou algum golo com a mão?
JVP - Não. Com a mão nunca marquei.

R - Não acha que esses conflitos foram reflexo de ter sido mais do que um mero jogador?
JVP - No Benfica tomei posições e envolvi-me em conflitos institucionais que me desviaram do relvado, mas no Sporting, por exemplo, tive sempre muito cuidado com o que fazia e dizia. Tinha 30 anos, já não era um garoto e estava escaldado com o que me acontecera na Luz. Queria apenas jogar futebol, aquilo que melhor sabia fazer, e da minha boca só saíram palavras de união. E era verdade: estava ali para ajudar e unir os adeptos. Mesmo sendo sincero, a parte mais difícil era eles acreditarem no que eu lhes dizia.

R - E acreditaram?
JVP -Não tenho dúvidas quanto a isso.

R - Por que motivo escolheu o Benfica quando saiu do Boavista pela segunda vez?
JVP - Tive contactos com Sporting e FC Porto desde muito novo. Tudo começou num torneio em Évora, ainda como iniciado. Fui o melhor jogador e alvo do interesse de Aurélio Pereira (grande mestre do futebol) e do senhor Manuel Ferrão, falecido há cerca de uma semana. Quiseram levar-me então para Alvalade. E o mesmo aconteceu com o FC Porto. Lembro-me das viagens de comboio que fazia do Porto para Lisboa com o senhor Costa Soares, elemento da formação portista, em que ele tudo fez para me levar para as Antas.

R - Não foi porquê?
JVP - Porque o major foi sempre intransigente. Nunca deu a mínima hipótese de conversa e eu próprio também não estava inclinado a aceitar convites. Sempre segui o raciocínio segundo o qual era muito mais difícil chegar a sénior no FC Porto, no Benfica ou no Sporting do que no Boavista. Para o meu objetivo de chegar à Liga, estava bem no Bessa. Sempre entendi que a transferência tinha tempo para acontecer.

R - E o que desequilibrou os pratos da balança para o Benfica?
JVP - Estava em estágio com a Seleção, em Chicago, em 1992, quando soube de um acordo entre o major e Sousa Cintra, na altura presidente do Sporting. Cintra e Manuel Fernandes foram ao hotel ter comigo dando-me conta que estava assinado um acordo entre os clubes e que só faltava a minha assinatura para consumar o acordo. Ouvi mas não tomei qualquer decisão. Preferi esperar um pouco.

R - Por algum motivo especial?
JVP - Não, apenas porque queria um pouco de tempo. Dias depois, soube que o Benfica também estava interessado em mim. Lembro-me perfeitamente porque soube a notícia quando me encontrava no último andar daquele que era, à época, o edifício mais alto do Mundo. Não sei explicar mas pareceu-me premonitório. Optei pelo Benfica e em boa hora o fiz.

R - Como decorreram as primeiras semanas na Luz?
JVP - Quando cheguei deparei-me com um clube enorme e uma equipa experiente, recheada de grandes jogadores como Mozer, Vítor Paneira, Veloso, Neno, Silvino, Rui Águas, entre outros. Tive algumas dificuldades iniciais, eu, como o Rui Costa, o Hélder e o próprio Mostovoi... O treinador era o Ivic, uma pessoa peculiar. Percebi logo que não iria ser primeira opção. Comecei a jogar na chamada equipa Coca-Cola, a dos suplentes, e não estava a achar graça àquilo.

R - Chegou a pensar em sair?
JVP - Pensei, pensei. Antes de um jogo no estágio na Suécia, estava na bancada com o Mozer e disse-lhe que ia regressar ao Boavista, porque a minha ambição era jogar e ali não teria hipóteses. Lembro-me que ele ouviu e respondeu-me com impressionante serenidade: "Calma garoto, as coisas mudam muito rapidamente. Dá tempo ao tempo que a tua hora vai chegar." Lá me fui aguentando, a treinar como sempre, mas sem grande esperança.

R - Quando é que chegou a sua hora?
JVP - Nada me indicava que seria titular no primeiro jogo do campeonato. Estava na cabina quando ouvi o meu nome no onze. Fiquei surpreendido mas deitei mãos à obra. Lá está, por isso digo que também fui bafejado pela sorte. No jogo em que precisava de me afirmar, joguei e marquei o golo da vitória na deslocação a Santo Tirso - ganhámos 2-1, num terreno tradicionalmente complicado.

R - Nessa época sofreu o pneumotórax. Lembra-se do que passou na altura?
JVP - De todas as lesões que sofri, essa foi a única a pôr em risco a própria vida. As outras foram mais osso menos osso partido, mais ligamento menos ligamento rompido, enfim, afastaram-me dos relvados mas não beliscaram a minha integridade. No início não me preocupei, porque não me apercebi da gravidade do estado de saúde.

R - Nem devia ter feito a viagem para a Escócia...
JVP - Pois não, foi um risco quase inconsciente. Podia ter-me ficar no avião. Fiz a viagem toda a dormir e quando cheguei ainda fui treinar-me. Dei meia volta ao campo com o Rui Águas, que também estava lesionado, e ele disse-me: "Vê lá se te aguentas, porque eu não vou conseguir jogar." Ouvi-o e respondi: "Nem penses nisso, eu estou muito pior do que tu." Parei logo a seguir, fui para o hotel e, porque as dores continuavam, levaram-me a uma clínica. Aí é que tomei verdadeira consciência do que estava a passar-se. Bastou-me olhar para a cara dos médicos para perceber tudo.

R - Essa temporada culminou com a final da Taça de Portugal ganha ao Boavista (5-2). Que análise faz a essa equipa do Benfica?
JVP - Uma equipa fabulosa. O campeonato não correu bem mas a vitória na Taça compensou um pouco a frustração - era sempre importante ganhar uma competição. Futre, Rui Costa, Mozer, Paulo Sousa, Isaías, Paneira, Schwarz... meu Deus, era um luxo. Talvez o problema fosse não funcionarmos muito como equipa, porque em termos individuais tínhamos tudo para sermos campeões.

R - Poucos dias depois dessa final, nasce o chamado Verão Quente na Luz...
JVP - A memória desse momento é que o Benfica passava por uma crise tremenda. O presidente era o falecido Jorge de Brito, excelente homem e grande dirigente, mal ajudado e compreendido, a quem sempre reconheci fantástica dedicação ao clube. Aos 21 anos, apercebi-me das dificuldades e preocupei-me. Por vezes, alguns companheiros davam-me a entender que a situação era catastrófica e que estavam prontos a sair. Depois alertavam-me para o facto de estar mal pago em comparação com outros que nem sequer jogavam, enfim, fui também eu fazendo a minha avaliação.

R - Quando decidiu que também estava disposto a sair?
JVP - Não houve um dia em especial. Também sabia que os salários estavam atrasados e que era cada vez mais difícil esse cumprimento básico por parte do clube. Quando o Sporting entrou em contacto comigo, o que me disseram taxativamente é que tinha justa causa para rescindir o contrato com o Benfica. E foi nessa perspetiva que avancei.

R - Mas era ou não verdade que podia?
JVP - Mais tarde disseram-me que, de facto, não havia justa causa - e se assim fosse, teria de ser eu a pagar uma avultada indemnização ao Benfica. Depois de falar com responsáveis fiquei a saber que o clube não estava assim tão debilitado como se dizia, que não estava à beira da ruína como o pintavam. Quando me apercebi do que tinha feito e da situação em que me encontrava, entrei em contacto com o presidente Jorge de Brito, que foi ter comigo a Espanha, para onde me desloquei após a assinatura do compromisso com o Sporting. Regressei então à Luz e assinei um novo contrato com o Benfica.

R - À distância de 16 anos, acha que esse episódio teve alguma influência na grande época que fez em 1993/94?
JVP - Não creio que as duas coisas estejam relacionadas. De qualquer modo essa foi uma temporada fantástica, porque o Benfica foi campeão e as coisas correram-me muito bem - fiz 34 jogos, marquei 15 golos e sei que contribuí fortemente para o sucesso da equipa.

R - Andou mesmo com o Benfica às costas durante aquelas épocas de jejum?
JVP - Essa expressão, que ouvi centenas de vezes, era um exagero. Por um lado encerrava o reconhecimento do meu valor, por outro aumentava a responsabilidade. Não vou agora comentar o conteúdo, digo apenas que era uma forma dos outros me distinguirem em tempos muito complicados para o Benfica. Não se esqueça de que em dois anos tive 40 e tal companheiros diferentes.

R - As consequências do título solidificaram elos de ligação ao clube. Em janeiro de 1997 assinou o célebre contrato vitalício com o Benfica...
JVP -Assinei por 7 anos (4 mais 3), que era o máximo permitido por lei. Depois do título em 1994 eu tinha vontade de continuar e o Benfica, na figura do presidente Manuel Damásio, também. Mais: ambos desejávamos que terminasse a carreira na Luz. Mas o que faz mover o futebol são os resultados e o que se faz hoje pode cair no esquecimento logo a seguir. Sem ganhar num clube como o Benfica a imagem degrada-se. Enquanto o presidente foi Manuel Damásio, o clube preservou o meu estatuto junto da direção, dos treinadores, dos adeptos...

R - Tudo mudou com a mudança de presidente?
JVP - Com a chegada de Vale e Azevedo tornou-se impossível a minha permanência no clube. Muito aguentei eu.

R - Quando percebeu que tinham chegado problemas insolúveis?
JVP - Antes mesmo de ele chegar. Há uma história curiosa, que por vezes recordo com o Rui Costa. Estávamos no Euro'96, em Inglaterra, e o Rui era o meu companheiro de quarto. O Vale e Azevedo candidatou-se à presidência pela primeira vez e queria contratá-lo. Num dos telefonemas que ele fez estávamos os dois no quarto. Disse ao Rui que gostava de o ver regressar (até aí tudo bem), que ia ser o capitão de equipa e mandar naquilo tudo... Acabou por não ganhar mas anos depois, quando chegou à presidência, bastou lembrar-me desse telefonema para antever o que me esperava.

R - Foi exatamente como esperava?
JVP - Foi pior. No primeiro dia de Benfica chamou-me à parte e disse-me que tinha de ir embora porque se não o clube ia à falência. Ainda me aguentei e resisti o mais que pude à pressão que foi exercendo quase diariamente.

R - De que forma?
JVP - Com palavras e atitudes que acabaram por envolver os próprios treinadores - Souness e Heynckes. Ir todos os dias para a Luz começou a ser um castigo.

R - Houve possibilidades de sair nessa altura?
JVP - Talvez tenha havido. Numa altura em que tinha sido operado ao maxilar, quando nem sequer conseguia falar, chamou-me ao escritório dele. Informou-me que me tinha vendido ao Deportivo Corunha, para eu falar com eles e decidir o meu futuro. Assim, de caras, sem o mínimo respeito, mais que não fosse pelo facto de eu não poder falar. Dessa vez resisti, também porque os adeptos se movimentaram, mostrando publicamente que desejavam a minha continuidade.

R - Mas esse apoio não durou até ao fim...
JVP - Os focos de instabilidade sucessivos, acompanhados pelos maus resultados, conduziram à divisão da massa associativa. Percebi claramente que, aos poucos, fui deixando de ter condições para continuar.

R - A saída era mesmo inevitável?
JVP - Acredito que sim. Mas só saí porque o fiz livremente, antes de um Campeonato da Europa. Aceitei porque ainda tinha mercado e, escudado nessa vantagem, arrisquei. A partir do momento em que rescindi com o Benfica, num domingo, com a célebre notária de Vale e Azevedo, marquei a conferência de Imprensa, no fim da qual recebi o contacto de dois clubes que me agradaram.

R - Que foram...
JVP - O Sporting de Augusto Inácio e o Newcastle de Bobby Robson. Era muito cedo para decidir mas fiquei muito feliz por saber que tinha alternativas automáticas. No entanto, preferi fazer o Europeu e só depois tomar a decisão definitiva.

R - Vale e Azevedo foi o maior pesadelo da sua carreira?
JVP - Quando foi para o Benfica, percebi que não via caras nem corações. Ele falava connosco nos olhos mas não sabíamos se estava a falar a sério ou a mentir - normalmente era a mentir, sobretudo a mim quando me chamava para dizer que ia pagar os salários aos jogadores no dia X e depois só passado um mês é que o dinheiro aparecia. A partir de uma certa altura tive de dizer aos companheiros que o meu papel era o de lhes transmitir o que o presidente me dizia. Se ia pagar ou não, não fazia a menor ideia. No fim, já ninguém acreditava nele. Vistas as coisas à distância de tantos anos, no Benfica meti-me em guerras que não eram minhas. Dei sempre a cara como capitão mas em certos conflitos devia ter-me refugiado. Serviu-me de exemplo para o futuro, principalmente quando fui para o Sporting.

R - Houve ainda aquela história do contrato por objetivos...
JVP - Exatamente. Chegou-se ao pé de mim e disse-me que, como capitão, tinha de assinar um vínculo igual aos outros, para dar o exemplo. Na altura tinha o meu contrato e respondi que ia cumpri-lo até ao último dia. A ideia era transmitir que, no Benfica, o jogador só recebia se ganhasse os jogos. A proposta que me fez foi esta: mantinha o contrato e aumentava a verba em caso de vitória, ou seja, passava a ganhar muito mais. Disse-lhe: "Se era para isto já podia ter-me chamado há mais tempo." Esse disparate só para poder anunciar que também eu tinha contrato por objetivos.

R - Souness refletia no dia-a-dia esse desejo institucional de o verem pelas costas?
JVP - Olhava para ele como para o presidente. Não o via como meu treinador porque ele estava ali para me tramar, para me entregar recados de alguém. E como o fazia? Criando problemas sucessivos que chegaram ao ponto de não me pôr a jogar. Nesse capítulo, o Souness foi o braço direito de Vale e Azevedo.

R - Depois ainda trabalhou com Jupp Heynckes. Os problemas foram os mesmos?
JVP - Na sua essência foram, mas o Heynckes foi mais inteligente a fazer as coisas. Menos visível para quem estava de fora mas com um comportamento claro para quem vivia o clube por dentro. Diria que a toada foi a mesma.

R - Para todos os efeitos foi ele quem avalizou tecnicamente a sua saída do Benfica...
JVP - Sim, mas passados uns dias, estava no Europeu, telefonou-me a dar os parabéns pelo golo à Inglaterra e para dizer que nada tinha a ver com a minha dispensa.

R - Acreditou nele?
JVP - Quando ele telefonou o golo à Inglaterra já lá morava e eu já estava dispensado do Benfica. Não acreditei nem deixei de acreditar.

"Andei perto da perfeição"

R - De tudo quanto fez no futebol, o destaque vai para os 6-3 ao Sporting em Alvalade...
JVP - Foi o jogo que marcou a minha carreira e que me vai identificar até ao final da vida.

R - Há alguma história desconhecida relacionada com esse momento?
JVP - Raramente falava com a minha mãe antes dos jogos e se isso acontecia era sobre coisas que nada tinham a ver com futebol. Na véspera desse jogo falámos pelo telefone, dentro do registo habitual - queria saber como me sentia, se estava nervoso ou não. É curioso porque ela nunca se deslocou a um estádio para me ver, preferia assistir aos resumos no final do dia, porque então já sabia que eu tinha chegado inteiro a casa. Isto para chegar à despedida da conversa. Sem vir a propósito, rematou o diálogo com uma frase enigmática: "Vais ganhar, filho." Ainda hoje não sei por que o fez. Mas aquilo saiu tão espontâneo que alguma coisa a impeliu a dizê-lo.

R - Que efeitos teve na abordagem ao jogo?
JVP - Guardei aquilo para mim e fiquei a pensar no significado das palavras. No dia seguinte, quando saímos do hotel no Guincho para o estádio, dei comigo a recordar a premonição da minha mãe. Era um jogo decisivo, estava em causa o campeonato e recordo-me de ir no autocarro em silêncio, concentrado... Quando existe muita pressão, o jogador debate-se com receios, angústias, dúvidas, e é nesses momentos que antecedem a entrada em campo que mais nos entregamos a nós próprios, às nossas reflexões, aos truques que cada um tem para se alhear um pouco do que está para vir.

R - Estava mais bem-disposto ou mais receoso?
JVP - Quando demos um passeio de manhã pelo Guincho ainda estava só bem-disposto, talvez por faltar algum tempo para o jogo começar. O pior é sempre quando vamos para o lanche, antes de entrarmos no autocarro. Quando chegou esse instante tive a perfeita consciência da importância do dérbi. Não podíamos falhar. Estávamos com 1 ponto de vantagem sobre o Sporting, a quatro jornadas do fim e jogávamos em Alvalade.

R - Com esse cenário quase sacro, encontra explicação para o que fez?
JVP - Não consigo explicar. É daquelas coisas que acontecem no momento e dificilmente se repetem. Ninguém é capaz de dizer, com antecedência, que vai fazer este drible assim, entrar na área e rematar. São decisões tomadas em frações de segundo... No primeiro golo nos 6-3, por exemplo, alterei a colocação do pé na bola no último instante. Era para rematar de uma forma e fi-lo de outra. A bola podia ter ido para as bancadas mas entrou no ângulo. Acontece.

R - Que foi o jogo da sua vida todos sabemos. Mas foi o melhor?
JVP - Foi, eu acho que sim. E é interessante porque na primeira meia hora nada me saiu bem. Falhei muitos passes, perdi alguns lances, tive dificuldades nas receções... Até ao primeiro golo não perspetivava uma noite de glória, bem pelo contrário. Depois disso foi um jogo quase perfeito. A perfeição não existe mas nunca andei tão perto dela como nessa noite.

«Quando insultei Souness...»

R - Houve algum episódio mais picante na vossa relação?
JVP - Num jogo com o FC Porto, na Luz, estava eu lesionado. Como capitão desloquei-me à cabina antes do encontro - o Souness tinha acabado de dar a palestra aos jogadores. Entretanto, e como é norma suceder, os elementos do onze dirigiram-se para o túnel, enquanto os outros ficaram um pouco para trás. Eu pensava que era o último, mas o Souness e o Vale e Azevedo atrasaram-se ainda mais. Quando olhei, vi o treinador a apontar para mim e a olhar para o presidente, dizendo em voz alta que eu era um mau profissional. Perdi a cabeça e disse-lhe tudo. Foi a única vez que insultei um treinador.

R - Recorda-se de um jogo em Alvalade que o Benfica venceu 4-1?
JVP - Lembro-me. Fiquei no banco, entrei e fiz o quarto golo.

R - Nesse dia não houve conflito?
JVP - Não me lembro. Mas talvez tenha havido qualquer coisa. Digo-lhe mais: se me fala no assunto é porque houve de certeza. Eles recorriam a tudo para ver se eu saía do clube.

R - Como e porque escolheu o Sporting?
JVP - Escolhi porque tinha acabado de ser campeão, estava numa espiral ascendente e parecia-me um clube muito estabilizado. Por outro lado mantinha-me na Seleção Nacional, continuava a lutar pelo título, não saía do país, não perdia a estabilidade e mantinha um bom contrato.

R - O FC Porto esteve ou não na corrida?
JVP - Sim, ao longo da carreira várias vezes tentou contratar-me, mas a insistência maior aconteceu nessa altura. Foram mais incisivos do que nunca e cheguei mesmo a falar com o presidente Pinto da Costa. Ele já o desmentiu publicamente mas sei também que já o confirmou em círculos de amigos mais próximos. Diga ele o que disser, a verdade é que falei com ele.

R - Isso ainda no Euro'2000?
JVP - A primeira pessoa com quem falei sobre o assunto foi o Jorge Costa. Mas também com o Silvino, com o Vítor Baía e com outros amigos portistas que conheciam bem a realidade do clube e gostavam de ver-me lá. Depois falei com Pinto da Costa e o empenho em contratar-me manteve-se até ao último dia.

R - A decisão estava tomada ou a incerteza durou até final?
JVP - Nesse processo eu estava com o José Veiga, que tinha péssima relação com Pinto da Costa. Ele não sabia do contacto com o FC Porto porque eu não lhe tinha dito e essas dúvidas, existindo, para ele eram só entre o Sporting e clubes estrangeiros.

R - Falou-se muito da abordagem feita por vários clubes de fora mas a sua tendência nunca foi a de arriscar...
JVP - Quando estava na Holanda e na Bélgica apareceram muitas propostas às quais tinha de responder em três dias. Meti na cabeça que enquanto decorresse o Europeu não tomaria qualquer decisão, o que me fez perder algumas boas oportunidades. A grande verdade é que, estando renitente em optar pelo estrangeiro, o interesse de Sporting e FC Porto dava-me tranquilidade absoluta.

R - Quando regressou a Portugal não pôde adiar mais...
JVP - Pois não. Para a ronda final de negociações partiram Sporting, Fiorentina e... FC Porto, cuja presença o José Veiga desconhecia, como já afirmei. Não podia esperar mais e o Sporting apertou o cerco, confiante de que estava só a discutir com a Fiorentina. Foi quando eu disse que o FC Porto também estava na corrida. Ficaram surpreendidos mas quando estamos a negociar cada um olha para os seus interesses.

R - A proposta italiana era boa?
JVP - Estava ao nível das outras. A do FC Porto era a mais elevada, com valores consideráveis e os mesmos anos de contrato. Mas aí prevaleceu o facto de estar em Lisboa há muito tempo e de, então, a dinâmica portista não ser propriamente a melhor - esteve três anos sem vencer o campeonato e eu não sei o que me aconteceria se lá vivesse um ciclo tão negativo. Podia acontecer-me uma situação do tipo Vale e Azevedo, sei lá...

R - Como recorda a sua entrada em Alvalade?
JVP - Foi um momento bonito da carreira. Fui com algum receio mas entrei bem e fui logo muito acarinhado pelos adeptos. O problema é que estava lesionado no tornozelo esquerdo e não podia nem virar-me. Devia parar e tratar-me mas esse era um luxo inacessível para mim: tinha de treinar como os outros. Fazia-o com dores horríveis e lembro-me de ir para o velho campo de treinos, nos terrenos onde está agora o novo estádio, e ver centenas de pessoas a incentivar-me, a aplaudir-me... Não conseguia rodar e muito menos rematar com o pé esquerdo.

R - Nunca pensou em desistir...
JVP - Era impossível. Fui disfarçando o melhor que podia e o próprio Inácio, conhecedor do que se passava, também entendeu que devia fazer o sacrifício. Fui melhorando aos poucos e percebi que as pessoas estavam do meu lado. Mesmo em jogadas banais, os adeptos faziam uma festa de cada vez que entrava em ação.

R - Lembra-se da estreia para a Liga em Alvalade?
JVP - Claro. É o que já lhe disse, a sorte é importante nesta vida. Voltei a tê-la nessa tarde. Ganhámos ao Farense por 1-0 e marquei o golo.

R - Essa época de estreia serve de transição para 2001/02, que rivaliza na sua carreira com a de 1993/94...
JVP - É verdade, curiosamente fiz uma com 21 anos e outra com 30.

R - No seu entender qual foi a melhor?
JVP - Se analisarmos as coisas atendendo ao talento integrado num coletivo, escolho a do Sporting. Se observarmos pela expressão individual em si mesma, diria que foi melhor a do Benfica 1993/94.

R - A época mais goleadora foi em 1995/96, com Mário Wilson...
JVP - Sim, mas nessa época até marquei penáltis, coisa que nunca fiz na minha carreira.

R - Alguma razão especial?
JVP - Na final de um Campeonato da Europa, na Hungria, frente à União Soviética, eu e o Rui Bento falhámos os penáltis no desempate. A partir daí nunca mais quis marcá-los.

R - Mas era uma questão de honra?
JVP - Não, de forma alguma. Dizia sempre aos treinadores que preferia não ter essa responsabilidade mas se eles entendessem o contrário podiam contar comigo. Muitos não entendiam e argumentavam que rematava e colocava bem a bola. Era uma questão de estado de espírito.

R - No Sporting assistiu ao aparecimento de uma nova geração de grandes jogadores: Ricardo Quaresma, Hugo Viana, Cristiano Ronaldo...
JVP - Foram os felizardos, porque apanharam uma equipa forte e com bom ambiente, composta por muitos jogadores portugueses, experientes, que os incentivaram e lhes chamaram a atenção quando foi caso disso. Sem perder de vista um treinador (Bölöni) que também soube ser pedagógico com eles.

R - Porque saiu do Sporting?
JVP - Inicialmente o clube fez-me uma proposta de renovação para metade do que auferia naquela altura. O primeiro erro que cometi foi nem sequer apreciá-la e dar, automaticamente, uma resposta negativa. Outro erro foi não entender o estado em que se encontrava o futebol português, razão pela qual encarei apenas como forma de negociação. Baixar para metade parecia-me um exagero, porque a minha convicção era de que o Sporting podia perfeitamente chegar a valores mais elevados.

R - Mas houve mais oportunidades para se entenderem?
JVP - Entretanto preparava-se uma digressão aos Estados Unidos e uma das condições era eu estar presente. Antes da partida agendámos uma reunião, depois de conversa pelo telefone com o dr. Bettencourt. Como já andava no futebol há muito tempo percebi o essencial: tinha de ir para a digressão mas eles já tinham tomado a decisão de não renovar comigo - o Pinilla já estava contratado.

R - Foi isso que acabou por suceder?
JVP - Foi. Viemos da digressão e foi-me dito que já nada havia para negociar. Em resumo, eu errei ao princípio mas eles tiveram oportunidade de voltar atrás e não quiseram.

R - Teve pena de não continuar?
JVP - A saída de Alvalade foi uma precipitação. Minha e do clube. Ambos teríamos ficado a ganhar se chegássemos a um acordo.

R - Se tivesse continuado acredita que acabaria a carreira no Sporting?
JVP - Talvez, não sei. Nunca pensei em sair do Benfica e saí. Quando fui para o Sporting achei que ia acabar ali, porque tinha estipulado os 32 ou 33 anos para terminar a carreira, e ainda passei por Boavista e Sp. Braga.

"[Jardel] Na grande áreaera um fenómeno"

R - A associação com Jardel foi a mais impressionante da sua carreira?
JVP - Um futebolista deve perceber o mais depressa possível as características de quem joga por perto, conhecer os seus pontos fortes, qual a maneira de pensar, como age e reage perante as mais variadas situações. Eu tinha a particularidade de entender quem se movimentava na minha zona. Fala do Jardel, mas também podia falar do Rui Costa, que jogava atrás de mim no Benfica e na Seleção. Sabia sempre o que ele ia fazer e o contrário também era verdade. Com o Jardel era a mesma coisa: ele adivinhava as soluções que eu encontrava para cada lance e eu sabia sempre onde é que ele estava. Bastava para termos sucesso. Na grande área era um fenómeno.

R - Esse entendimento pressupõe uma relação fora do campo ou obedece a mera intuição futebolística?
JVP - É a linguagem do futebol. Não se consegue explicar por palavras e não creio que obedeça necessariamente a cumplicidades fora do campo. Acontece lá dentro. Nós sabemos que vai ser assim mas não conseguimos explicar como sabemos.

R - Há outro jogador com quem o entendimento tenha roçado a perfeição?
JVP - O Ricky, no Boavista, que também foi o melhor marcador do campeonato. Jogava bem de cabeça e era muito rápido, o que pressupunha uma relação diferente comparada com o Jardel, por exemplo. O tempo ajuda a consolidar essas cumplicidades e a partir de uma certa altura consegue-se mesmo jogar de olhos fechados. Há uma história curiosa, num dos primeiros treinos que fizemos no Sporting a seguir ao título. Assim que eu recebia a bola, todos os jogadores da equipa adversária gritavam para marcar o Jardel. Mas mesmo assim, a bola ia para lá e ele fazia golo. E não se esqueçam de outra coisa: também eu marquei muitos golos como resultado dessas relações.

R - O regresso ao Boavista não foi tão feliz quanto pensou...
JVP - O primeiro ano no Boavista foi muito mau. A muitos níveis, o principal dos quais na relação com os treinadores. Não me identifiquei com os métodos e a maneira de ser deles, acho que me trataram mal e não me respeitaram. Foi o pior ano da minha carreira, em termos desportivos e de convivência com a equipa técnica (comandada por Jaime Pacheco).

R - Pior ainda do que no Benfica de Souness?
JVP - Pior porque na Luz tinha o meu estatuto e jogava num grande clube. Ali estava mais vulnerável. Não vim embora ao fim de um mês por respeito ao clube.

R - A segunda época retificou boa parte dessa má impressão?
JVP - A entrada de Carlos Brito foi uma lufada de ar fresco. Criou uma nova mentalidade, senti-me útil, fui o melhor marcador da equipa e falhámos as competições europeias por um ponto. Isso numa altura em que o Boavista já estava muito mal. Com pena minha tive de sair. Sem querer alongar-me, arrependi-me de ter regressado às origens.

R - Surgiu então o convite do Sp. Braga...
JVP - Já tinha sido convidado um ano antes, quando o professor Jesualdo Ferreira lá estava. Mas como tinha a intenção de acabar no Boavista e nem sequer queria jogar muito mais tempo, não fui. Acabei por ir mais tarde, provando a mim mesmo que ainda não tinha chegado a hora. A primeira época até correu bem: o Sp. Braga estreou-se na fase de grupos da UEFA e passou-a pela primeira vez na sua história, sinal de que valeu a pena a aposta.

R - Foi feliz em Braga?
JVP - Fui. Tive final feliz num clube que me respeitou e que eu respeitei até ao último dia. Curiosamente, despedi-me no mesmo estádio em que me estreei na I Divisão: no 1.º de Maio, num embate da Liga Intercalar. Lesionei-me, recuperei, ainda fui aos Estados Unidos ver se prolongava a carreira e, como não deu certo, solicitei uma reunião com o presidente Salvador, na qual lhe disse que não tinha condições, não queria jogar mais e desejava rescindir amigavelmente o contrato.

R - Não tinha condições anímicas ou físicas?
JVP - Ambas. Estava a chegar ao fim e não devia prolongar a agonia até ao termo da época. Com aquela decisão respeitei-me a mim e ao Sp. Braga.

R - Foi o final de carreira que desejava?
JVP - Foi o final possível. Acabei com dignidade, que era o meu objetivo para esse momento. Repare: podia ficar no plantel, como um peso morto à espera do final do mês ou do contrato, para ganhar mais algum dinheiro. Mas esse não era o modo mais correto de encarar a situação.

R - O Rui Costa quando abandonou disse a mesma coisa, que já não dava para mais...
JVP - O problema é quando deixamos de ser os melhores para nós próprios. É o primeiro sinal. Um jogador quando passa uma vida no topo e é considerado um dos melhores das equipas que representa - não digo isto com vaidade mas acho que posso dizê-lo sem vergonha - sabe intuir que perdeu faculdades. Quando o corpo começa a não corresponder à agilidade mental, meu caro, é o princípio do fim. E isso acontece gradualmente, com o peso agravado de 19 anos de carreira que provocam desgaste no dia-a-dia - já não suportamos sequer as conversas do balneário. Mesmo considerando que isso teve as suas vantagens: cheguei aos 36 anos e mantive-me jovem e atualizado.

Coisas de Nuno Assis

R - Qual o jogador de hoje em quem se revê?
JVP - O Nuno Assis tem algumas coisas parecidas. Eu era mais ofensivo, podia jogar até como ponta-de-lança, ele atua mais recuado e aparece de trás para a frente. Mas há aspetos em que me revejo nele. No estilo, nas decisões que toma, no modo como se relaciona com o jogo. Outra diferença é que eu jogava bem de cabeça. O Rui Jorge queixava-se que eu só marcava golos de cruzamentos da direita. Nunca me tinha ocorrido mas, de facto, reconheço que tinha mais disponibilidade para fazer-me à bola quando vinha do lado direito.

Aquele golo à Inglaterra

R - Qual foi o melhor golo que marcou?
JVP - Com a Inglaterra, no Euro'2000. Não só pelo gesto na conclusão como por todo o lance - trocámos a bola durante uma eternidade. Mas só depois de vê-lo na televisão é que tirei essa conclusão. Na altura achei que tinha sido um golo como os outros.

Treinador? Nem pensar!

R - Há alguma hipótese de vir a ser treinador?
JVP - Nunca tirei o curso. É uma ocupação que não está e nunca esteve nos meus horizontes. Basta olhar à volta para perceber que, por norma, o treinador está em clubes por períodos muito curtos. Não quero essa instabilidade para a minha vida. Isto dá muitas voltas, aprendi o valor da palavra nunca, mas não quero ser treinador de futebol.

Diretor desportivo? Depende...

R - Vê-se num cargo de diretor desportivo?
JVP - Depende do que esperem de mim. Só depois de saber o que pretendem saberei se sou capaz de desempenhar a função. Aceitar uma função só para estar ocupado é que não pode ser.

Presidente Luís Figo

R - Figo daria um bom presidente da FPF?
JVP - Não sei, embora me agrade a ideia de ver os mais altos cargos do futebol entregues a ex-jogadores. Futebolistas com carreiras ao mais alto nível mundial, com conhecimentos adquiridos um pouco por toda a parte, devem ter oportunidade para expor e aplicar as suas ideias. O Luís está nesse lote.

Jaime Pacheco sem perdão

R - Consegue definir o momento mais doloroso da carreira?
JVP - Foi num Benfica-Boavista, na Luz. Passei toda a segunda parte a aquecer, juntamente com outros três companheiros. Eles entraram, eu voltei para o banco. Nunca perdoei a Jaime Pacheco. A perder por 3 ou 4-0 meteu o Toñito, que foi expulso 10 minutos depois. No fim, em plena cabina, culpou-o da derrota.

Números sem significado

R - Alguma razão para os números de camisola que escolheu na carreira?
JVP - Eram os que estavam livres. Só isso. À exceção do 12 que enverguei no regresso ao Boavista, que o presidente escolheu simbolicamente, agarrado à imagem de eu ser uma espécie de 12.º jogador, delegando em mim o espírito dos adeptos. Mas nunca liguei a isso. Sempre entendi que é o jogador que faz o número e não o número que faz o jogador.

Camisola e botas de Riade

R - Guardou muitos objetos ao longo dos anos em que pisou os relvados?
JVP - Guardei alguns. Não se pode dizer que seja um grande colecionador, mas fiquei com alguns. Os que ocupam lugar mais destacado são as botas e a camisola com que joguei o Mundial de Sub-19 em Riade.

RECORD - Que tipo de sentimentos lhe desperta a carreira que fez?
JOÃO PINTO - Foram anos que passaram muito rápido mas que valeram a pena. Tive um início muito bom, no qual para lá do talento que me foi reconhecido, beneficiei da ajuda de muita gente. E tive alguma sorte pelo meio, como é imprescindível nestes casos.

R - Está a pensar em quem e em quê?
JVP - Estou a pensar nas chamadas às seleções nacionais e na rapidez com que acedi à equipa principal do Boavista. Foram essas pessoas, que tiveram sensibilidade e acreditaram no meu talento, que me ajudaram a ser quem fui. Agora olho para trás e recupero as sensações de felicidade que esses tempos suscitam, quando a paixão pelo futebol estava ao rubro e a minha ambição em ser futebolista não tinha limite.

R - Que importância tiveram as seleções nacionais das camadas jovens?
JVP - Quando fui convocado pela primeira vez para os Sub-16 tudo se tornou mais sério. Foi uma indicação, para mim e para os responsáveis do Boavista, de que podia ter uma carreira profissional pela frente. As seleções formaram-me como jogador e homem.

R - É verdade que, em miúdo, chegou a ir treinar-se às Antas?
JVP - Nasci e morei nos primeiros anos de vida ao lado do antigo estádio do FC Porto. Tinha simpatia pelo clube e tentei a minha sorte. Uma coisa era ser bom no bairro, outra era triunfar num grande clube. Por isso quis saber o que valia. Mas as captações eram na Constituição, que ficava longe de casa. Fui a pé com um amigo, o Zé Pisca, que hoje é um dos roupeiros do Bairro do Falcão.

R - E que avaliação lhe fizeram?
JVP - Não fizeram. Fomos para lá de manhã mas os treinos eram à tarde. Como fomos a pé e estávamos cansados, não quisemos esperar e regressámos a casa. Por isso, é verdade que fui lá, que tentei a sorte no FC Porto mas nem sequer me treinei. Continuei a jogar no bairro mas, passados uns meses, fui convidado pelo Águias da Areosa, clube que ficava perto e tinha futebol de 11.

R - Foi aí que começou a dar nas vistas?...
JVP - Foi. Comecei a jogar nos infantis e a equipa calhou num grupo muito difícil, com FC Porto, Boavista, Valadares, entre outras formações das redondezas. O primeiro grande momento aconteceu frente ao FC Porto. Contra todas as previsões ganhámos 3-1 e eu marquei os 3 golos. Os dirigentes do Boavista falaram comigo e só depois é que os diretores do FC Porto me abordaram. Era tarde, porque já tinha dado a minha palavra.

R - Quando nasceu a importância do major Valentim Loureiro na sua carreira e até na sua vida?
JVP - Na minha segunda época no Boavista. Fui para lá com 12 anos, fiz o primeiro ano como infantil, que me correu bem em termos individuais, e foi a seguir que me cruzei pela primeira vez com o major. Fomos à final do campeonato nacional de iniciados, o que nunca sucedera na história do clube, e conheci-o então.

R - Mas ele já sabia da sua existência?
JVP - Ele era presidente do clube, tinha mais em que pensar, mas sabia o que se passava em todos os escalões. Eu era dos que estavam referenciados. O meu treinador na altura era o senhor Emídio, infelizmente já falecido - aproveito para prestar a minha homenagem aos meus primeiros mestres: o senhor Germano, antigo jogador do clube, nos infantis; o falecido Celso, nos juvenis e o Mário João nos juniores.

R - Como decorreu esse primeiro encontro com o major?
JVP - Ele foi a Coimbra ver as meias-finais e a final, o que, só por si, era um grande acontecimento para nós. Vencemos a U. Leiria e ele foi às cabinas. Deu-nos os parabéns e recordou que era a primeira vez que o Boavista chegava a uma final nas camadas jovens. Como era o capitão de equipa, dirigiu-se a mim, tirou um maço de notas do bolso (40 contos em dinheiro antigo, correspondentes a 200 euros) e deu-mo para distribuir pelos meus colegas. Ganhar o primeiro dinheiro no futebol foi uma sensação extraordinária.

R - Desde então nunca mais se afastaram?
JVP - A partir daí mantivemos um relacionamento mais chegado. Depois fui chamado à seleção da AF Porto e mais tarde às seleções nacionais, sinal de que tinha um futuro risonho, no qual ele desejava participar.

R - Deve muito às seleções jovens na sua formação?
JVP - Foram determinantes. Passei ali muitos anos, desde a segunda metade dos anos 80 até 2002. Foi um trajeto muito longo, no qual me cruzei com pessoas capazes e que muito contribuíram para minha formação. O meu primeiro treinador foi o José Augusto, num tempo em que as seleções jovens perdiam com regularidade, razão pela qual o interesse mediático era quase nulo.

R - Lembra-se de alguma história nesses primeiros passos?
JVP - Estreei-me num torneio do Algarve. Perdemos os dois primeiros jogos e, na cabina, o José Augusto disse-nos que havia duas hipóteses: ganhávamos e voltaria a chamar-nos ou perdíamos e nunca mais éramos convocados. Ganhámos 1-0 à Itália e eu marquei o golo. Ainda bem que assim foi porque, no ano seguinte, deu-se o grande salto, também à custa de quem correra riscos de não voltar.

R - Então já com Carlos Queiroz?
JVP - Sim. No ano seguinte fomos à final do Europeu de Sub-16, abrindo um ciclo fantástico. Foi numa altura em que passávamos muito tempo juntos em estágios e competições, altura a partir da qual criámos amizades que ainda hoje perduram, independentemente das carreiras que cada um fez. Esse trabalho liderado pelo professor Carlos Queiroz, com Nelo Vingada e outros, deu futuro ao futebol português.

R - O ciclo de sucesso começou nessa altura?
JVP - Eu creio que sim. O edifício do futebol nacional estava totalmente degradado e o atraso em relação a quase todos os países da Europa era evidente, porque não havia dinheiro, nem vontade, nem condições para criar um modelo que servisse os nossos interesses. Recordo-me que a primeira batalha ganha foi criar condições para estágios mais longos.

R - Nas camadas jovens o seu papel nos grupos de que fazia parte era diferente...
JVP - Era o papá... Fui pai pela primeira vez aos 16 anos e todos os colegas me olhavam de outra forma, porque era o capitão e, de facto, a minha responsabilidade em termos pessoais e familiares era maior do que a deles. Depois jogava no Boavista e não era muito habitual alguém ir às seleções sem pertencer aos três grandes. O professor reduziu esse estigma porque alargou as observações e trouxe para a ribalta mais gente fora de Benfica, Sporting e FC Porto.

R - A partir de certa altura já era titular do Boavista e um dos jovens mais talentosos do futebol português...
JVP - Precisamente. E em 1989, depois de perder duas finais europeias, ajudei Portugal a ser campeão do Mundo de Sub-19 em Riade. Foi uma felicidade indescritível.

At. Madrid: "Vivi o lado mais obscuro do futebol"

R - A saída para o Atlético Madrid tinha tudo para dar certo. O que falhou nessa transferência?
JVP - A situação do futebol antes da lei Bosman era muito complicada, porque havia limite para estrangeiros. Apanhei essa fase e, sendo muito novo, o Atlético pagou 500 mil contos (2,5 milhões de euros) pelo meu passe. Ora o meu caminho no clube estava tapado por jogadores de grande qualidade e experiência. O brasileiro Baltazar tinha sido o melhor marcador da Liga anterior, o Futre era a estrela do Atlético e do futebol espanhol, e o Donato ainda não se tinha naturalizado espanhol.

R - Percebeu logo que não ia triunfar?
JVP - Desconfiei, até porque, para dificultar ainda mais, lesionei-me. Depois de parar seis meses e de ver o que se passava à minha volta, percebi que ia ser muito difícil ter uma oportunidade. Isso também pensaram os dirigentes, que seguiram o mesmo raciocínio e mandaram-me para o Atlético Madrileño, que era a equipa B. Mas isso trazia água no bico, como costuma dizer-se.

R - Em que sentido?
JVP - No sentido de que o fizeram com o objetivo claro de não pagarem a totalidade da transferência. Vivi então o lado mais obscuro do futebol. Até lá tinha sido tudo cor-de-rosa.

R - Lembra-se do momento exato em que foi para Madrid?
JVP - Perfeitamente. Foi no dia de Natal de 1989, sob um frio de rachar, que saí do Montijo com o Paulo Futre. Levava emoções contraditórias: a ilusão de uma nova etapa mas, ao mesmo tempo, o receio pelo desconhecido. Sempre fui muito apegado às minhas raízes, tinha 18 anos, responsabilidades familiares, e aquilo ia ser uma aventura para mim. O primeiro mês foi bom, fiquei em casa do Futre e só depois fiquei a viver sozinho em Las Rosas, zona próxima do local onde a equipa treinava.

R - Essas dificuldades por que passou marcaram-no ao ponto de recusar sistematicamente outras experiências no estrangeiro?
JVP - De início é verdade. Quando voltei de Madrid andei três ou quatro anos em que nem queria ouvir falar de possíveis transferências para fora. Depois, no Benfica tive a sorte de receber tudo aquilo de que precisava. Tinha um bom contrato, jogava sempre para o título, participava nas competições europeias, estava próximo da Seleção... Nada me impelia a ir para o estrangeiro. De resto, muitos companheiros de equipa me confidenciaram que, na minha situação, fariam a mesma coisa.

R - Rui Costa chegou a dizê-lo publicamente por mais de uma vez...
JVP - Foi um deles, é verdade. Mas eu não só tinha um bom contrato no Benfica como a má experiência vivida em Madrid.

3 comentários:

Anónimo disse...

Bravo, seems remarkable idea to me is

Anónimo disse...

I can not participate now in discussion - it is very occupied. I will be released - I will necessarily express the opinion on this question.

Anónimo disse...

My HD TV only has a picture in the top fight corner. How do I fix it?

There should be a PIP or Picture in Picture button. Hit it. Otherwise, unplug TV for like 10 mins and plug back in, itll be fine.
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